domingo, 24 de agosto de 2008

Vinte anos

« Quando tinha vinte anos li num livro de Fernanda Botelho (já não me lembro qual...): "Vinte anos, a idade mais bela da vida (dizem...) e fiquei, durante muito tempo, a pensar naquele "dizem". Na altura, não tinha qualquer dúvida sobre a glória dessa época da vida: passadas as inquietações da adolescência, podia fazer quase tudo o que me apetecia — estudar na Faculdade de Medicina de Lisboa, divertir-me com amigos e amigas e combater Salazar nos movimentos estudantis.
Vivia-se uma época de grandes mudanças: as mulheres tinham abandonado a crença de que a maternidade e a gestão do lar seriam as suas únicas fontes de realização e começavam a estudar mais e a trabalhar fora de casa: os filhos passaram a ser planeados através da contracepção e confrontavam-se com as dificuldades de muitos lares desagregados pelo divórcio; a liberdade gritava-se na rua, nas barricadas do Maio de 68 ou na contestação à guerra do Vietname; e a guerra colonial portuguesa, condenada em todas as instâncias internacionais, era mantida pelo autoritarismo da ditadura, obrigando muitos de nós a partir para uma luta sem sentido.
Foi uma época intensa, que recordo com alguma nostalgia: ter vinte anos nos anos sessenta significava lutar pela paz, pela liberdade a todos os níveis e em todos os contextos, colocar sempre a verdade nas relações, viver novas experiêndas-limite sem os constrangimentos do passado. Foi bom? Foi muito belo! Não importa que os eternos críticos responsabilizem os anos sessenta pela educação liberal na família e na escola, transmitida aos filhos pelos jovens de há quarenta anos e causadora, para alguns, do excesso de gratificação e permissividade visíveis nas crianças de hoje: a verdade é que a influência da maneira de pensar e de agir dessa época foi decisiva em muitos sectores. O que torna o balanço final bem positivo, se a análise tiver a objectividade já permitida pelo tempo que passou.
E agora: o que significa ter vinte anos? Impressiona verificar como tudo mudou e qualquer comparação não se justifica. As discussões actuais sobre jovens de hoje são melhores ou piores, ou se sabem mais ou menos coisas, caecem de sentido: são diferentes, e isso é que importa ter em conta.
Ter hoje vinte anos significa sentir na pele a precaridade do emprego e a necessidade de estudar mais. Compreender à sua custa o conceito de globalização e o fim das fronteiras rígidas, porque ninguém sobreviverá com sucesso sem conhecer o mundo, com tudo do bom e do mau que hoje nos é mostrado a cada instante. Perceber o fim das utopias que tudo pretendiam explicar, mas ter a certeza de que novas formas de participação cívica estão agora ao alcance de um blogue ou de uma petição on-line. Saber que nada é previsível porque um ataque terrorista pode matar milhares na vida real, ao mesmo tempo que um jogo virtual permite "destruir", com um só gesto, todos os "maus" das nossas estórias.
O mundo chega aos jovens de hoje através de um ecrã de um computador e a televisão tradicional em breve será para eles um objecto obsoleto, interessante apenas para pais e avós. Os seus ídolos são variados e os seus gostos heterogéneos, porque o acesso à cultura já não depende apenas da transmissão dos mais velhos, chega-lhes por um sítio na internet ou pelo mail de um amigo.
A geração-net (dos vinte anos de hoje) não contesta os valores da sociedade de consumo, como fizeram os seus avós nos anos sessenta. Não adere às utopias revolucionárias de setenta, nem se deixa convencer pelas raivas de noventa: tenta sobreviver no caos à sua volta, lidar com a flexibilidade dos valores que os circundam, procurar um sentido. Ter uma boa casa e um belo carro, como aspiravam os seus pais, não é agora um objectivo primordial: o que interessa é conquistar a autonomia que possibilite encontrar a sua via para a felicidade.
Sempre conectados (i-pod, MSN, SMS...), os jovens de hoje são capazes de fazer várias coisas ao mesmo tempo com toda a atenção - aspecto que os professores ainda não entenderam. Como não sabem se o mundo alguma vez ficará mais estável, vivem cada momento como se fosse o último. Lutam pelas suas causas e constroem os seus valores, mas o perigo está mesmo aí: ninguém sobrevive bem sem passado e sem referências.
O desafio para os educadores de hoje consiste na transmissão do justo equilíbrio entre a experiência do passado e a verificação da novidade do presente, porque o tempo actual também é dos mais velhos.»


Daniel Sampaio, in Pública 24.08.08