quinta-feira, 21 de dezembro de 2006



"Arte Poética V
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Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde que não há poesia em silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Um dia em Epidauro - aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas - coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mimTempos depois, escrevi estes três versos:
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A voz sobe os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha.
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Sophia de Mello Breyner Andresen
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A culpa é do Natal que me fez mexer de novo nessas fotografias. Por recordarmos de novo, quer dizer que nos havíamos esquecido? Como é possível ter eu deslembrado a admiração por esse senhora, cujas palavras enchem, numa plenitude realista?...
Hoje, então, a esta senhora, que me trouxe à memória a magia de Epidauro e o velho sonho de... escrever.

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